Um livro é uma colagem
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Sobre Ziraldo e livros legais
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Sobre Ziraldo e livros legais

Quando os livros infantis nos fazem adultos leitores
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Quando estava na 3ª série, foi feito um sorteio na sala de aula pra saber qual livro cada criança teria que ler durante as férias de julho. Animada com a perspectiva de comprar um livro incrível, o papelzinho escolhido por mim dizia Tonico, de José Rezende Filho. Se hoje o nome não me diz nada, imagina na época? Já o Pedro, o menino mais espoleta e indisciplinado da turma, caiu com O menino maluquinho, do Ziraldo. Lembro de ter ficado com inveja, era a primeira vez que eu via um livro legal sendo sugerido como leitura pela escola.

Li o livro Tonico. Não lembro o enredo, só de uma cena em que o porco de estimação do garoto, cujo nome dá título ao livro, vira o almoço de domingo da família. Quando ele descobre, passa mal e chora. Na época, foi um choque saber que meninos podem comer seus bichos de estimação, mesmo que eles não saibam disso. Fiquei imaginando como a leitura de Pedro deveria estar bem mais divertida que a minha.

Nada contra os livros como Tonico. Se ainda hoje lembro de algo dele após trinta anos, é porque teve sua importância na minha formação intelectual e emocional. Na verdade, este texto é a favor de livros legais aos olhos da criança e, pra mim, dos livros do Ziraldo, O menino maluquinho foi o mais marcante. 

Não é um livro espalhafatoso, com ilustrações em cores berrantes ou páginas que saltam aos olhos. O que havia nele era um traço único, uma história cativante, uma criatividade absurda. Até hoje, quando penso na descrição que Ziraldo fez do Menino, um sorriso aparece automaticamente no meu rosto. Talvez tenha sido uma das melhores já feitas na literatura infantil, quando a gente pensa em complemento entre o texto e a imagem. “Olho maior que a barriga”, “fogo no rabo”, “pernas que abraçam o mundo”: quando Ziraldo transforma as expressões populares numa representação gráfica literal, ele mergulha no imaginário infantil e o que se vê não é mais um menino, mas uma espécie de ser mágico. Crianças se divertem em ver no papel o que são, adultos se divertem em ver no papel o que foram.

Li outros livros de Ziraldo, havia alguns deles na biblioteca da escola. Mas não li Flicts, outro livro bastante mencionado em posts de homenagens ao Ziraldo nas redes sociais. Lembro de ver o livro nas estantes da biblioteca, acho que o livro era um tanto quanto abstrato para a Sandra Milena da época. Vou procurar lê-lo assim que possível.

Com a morte do Ziraldo, morre um pouco da nossa genialidade, da nossa memória, da nossa ternura. Que seus livros continuem a inspirar novas gerações de leitores, assim como fizeram com a minha geração e a do Pedro da 3ª série, um menino meio maluquinho também.      

Obrigada Ziraldo.

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🔷 Crônica da quinzena

A cada duas semanas, postarei neste espaço uma crônica sobre meu cotidiano. Nesta edição, a história de um postal encontrado no hall do meu prédio.

O postal

Numa manhã qualquer, voltando da academia, vi um papel pequeno manuscrito em cima de uma mesa no hall do meu prédio. Achei curioso ver uma letra cursiva dando sopa em um lugar de passagem como aquele. Peguei o papel. Ele era mais pesado que uma folha sulfite e havia um selo colado em seu canto superior direito. Tratava-se de um cartão-postal.

Quando era menina, colecionava cartões-postais. Não sei de onde veio a vontade de acumular papéis com fotos de lugares turísticos. Comprava alguns durante as minhas viagens e pedia para as pessoas me comprarem quando viajassem. É claro que era mais legal quando meus amigos escreviam uma mensagem, compravam um selo e o enviavam de uma cidade diferente da minha. No entanto, sempre fiquei intrigada com a confidencialidade dos postais: como escrever algo para alguém sem o esconderijo de um envelope, deixando a mensagem livre para ser lida por um bisbilhoteiro ou uma bisbilhoteira qualquer? Não sei bem o que queria esconder, sobretudo naquela época. Todas as mensagens de postais são iguais.

O postal que estava em minhas mãos era para um tal de Toby, do prédio ao lado. Chegou ali por engano. Mas, sem engano nenhum, li a mensagem. Nada de “fui a Porto Seguro e me lembrei de você” ou “gostaria de ter você aqui em NY comigo” ou “Paris é mesmo um sonho”. Era uma mini-carta de amizade, da Jessica desejando ao Toby uma primavera repleta de desabrochares intensos, com tudo aquilo que a vida pudesse render ao momento. Além disso, Jessica não poupou adjetivos entusiásticos para falar o quão Toby era especial, um cara que merecia ser feliz e estar próximo a pessoas que o fizessem bem. No verso da mensagem, uma foto de uma mesa encostada em uma parede de azulejos brancos com arabescos pintados em azul. Sobre a mesa, dois cálices de vinhos do porto e dois pastéis de nata, diretamente da confeitaria Pastéis de Belém, em Lisboa.

Apesar do meu comportamento desrespeitoso, não me envergonhei de ter lido a mensagem alheia. Provavelmente, Jessica gostaria que todos tivessem o mesmo filtro afetuoso como o dela em direção de um amigo, um amor platônico, um primo-irmão, um mentor. No ato de escrever com papel e caneta, Jéssica escolheu cada uma das palavras com intenção, deixando um pouco do seu amor em forma de mensagem. Quando é que nos esquecemos de doar nosso tempo e atenção para declarar nossos sentimentos a quem mais amamos na forma de postais, cartões, declarações, serenatas, telegramas, poesia?

Em minhas mãos estava uma quase-relíquia. Com cuidado, levei-o até o prédio vizinho e conferi mais de uma vez o número do apartamento de Toby. Coloquei o postal na caixa de correio 1302 e voltei para casa.

Toby e Jessica, vamos comer pastéis de nata juntos?


🔷 Escrita & Colagem & Etc

⚡️NOVIDADE!

Nesta seção, postarei o que tá rolando no meu trabalho como escritora, colagista, mentora de escrita. Ah, sempre haverá uma sugestão de exercício pra você começar a esboçar as suas histórias.

OFICINA: Mais uma vez vou oferecer minha Oficina de Escrita Criativa As Viagens são os viajantes, dessa vez no Festival Latitudes em Óbidos, Portugal 🇵🇹. Ela acontecerá no sábado, dia 13, às 16h00. Vai ser a primeira vez que darei um curso fora de Londres e estou animadíssima. Um pouco antes, às 14h30, falarei com o público do evento sobre o meu livro Poemagem.

PUB & WRITING: Mais um PUB & WRITING em Londres pra quem gosta de escrever ou é curiosa/ curioso para começar. Ainda tem vagas para o dia 17/04 (4ª feira) e para o dia 22/04 (2ª feira) às 18h45, no Prince Alfred (Maida Vale). Inscrições aqui.

EXERCÍCIO: Abra uma gaveta qualquer da sua casa e pegue o primeiro objeto que aparecer. Escreva um texto sobre como esse objeto foi parar ali. Se você não souber a proveniência dele ou se a realidade for simples demais, invente algo diferente!


🔷 Colagem de Dicas

LIVRO: Eu falei da experiência de ler Jane Eyre há umas edições desta newsletter, mas não falei sobre o livro em si. A escritora Charlotte Brontë foi inovadora ao escrever um livro na 1ª pessoa, a partir do ponto de vista de uma órfã. Por meio do relato infantil, acompanhamos a infância cercada de violência e desamparo na casa de parentes e, posteriormente, um abrigo de meninas. Uma vez adulta, Jane se torna professora e vai trabalhar na mansão de uma família cercada de mistérios. Ali, ela aprende a ser vista como mulher e aprende a amar. Um livro gigante em todos os sentidos, daqueles de prender a atenção até o final.

INSTAGRAM: Adoro os conteúdos da Ana Paula Barbosa no perfil @narrativafeminina. Ela fala de cinema e cultura pop numa perspectiva feminina e LGBTQIAP+ em vídeos curtos superbem feitos e antenados. Adoro aprender sobre as novas diretoras e produtoras, além de me informar sobre o que está acontecendo nos filmes, nos streamings, nos livros.

NEWSLETTER: Gosto de receber os links de dicas da Maria Clara Villas na newsletter Galáxia. Tem de tudo: arte, cultura pop, mundo virtual, bem-estar, sociedade. É uma forma de se atualizar sobre o que acontece no mundo.

FILME: Eu amo filmes adolescentes e sempre volto a eles quando quero olhar para dilemas e realidades diferentes ao da vida adulta. Nesses dias, assisti Perfect Pitch / A escolha Perfeita (2012, diretor Jason Moore). O filme, ainda que tenha flertado com a diversidade de elenco e enaltecido a amizade entre mulheres, oferece várias piadas sexistas e preconceituosas que não se encaixam no mundo dos anos 2020. MAS, isto posto, é um filme em que jovens cantam músicas à capela maravilhosamente bem. E, nesse processo, se empenham, se inovam, se superam e se divertem. Sessão da tarde garantida.

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Olá, meu nome é Sandra Acosta, sou escritora, colagista e podcaster. Esse é um espaço pra compartilhar reflexões sobre escrita criativa, processos criativos, projetos artísticos e cinema.
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Sandra Acosta