* Pela primeira vez, esta newsletter terá uma versão áudio, em que leio o texto escrito para quem quer ouvir minhas ideias com a emoção da minha voz. Pra quem prefere ler, nada muda, o artigo segue aqui embaixo.
Desde menina, gosto do Japão, na linha “nunca te vi, sempre te amei”. Lembro de ir com meus pais na Liberdade, o bairro japonês de São Paulo, e talvez lá tenha nascido o deslumbramento com a terra do sol nascente. Ver os postes de iluminação vermelhos, visitar as lojas com luminárias redondas, sentir o cheiro de fritura dos tempuras eram um convite ao desconhecido. Eu me via como espectadora de um universo de símbolos que não conseguia ler e isso era encantador.
Mais tarde, tive amigas cujas famílias eram de origem japonesa. Assisti a filmes japoneses. Virei fã das animações do Studio Ghibli. Comecei a provar outros sabores da culinária japonesa, além do sushi com cream cheese. Li obras de autores japoneses. Só faltou ir até lá.
Talvez o que me atraia na imagem que tenho do Japão, além da tradição e disciplina, é a ideia de silêncio. E silêncio aqui não é a ausência do som, o que, nas cidades grandes japonesas, talvez seja impossível como em qualquer outra cidade grande. O silêncio que me refiro vem das pausas do tempo e do ruído externo, a ponto de ser ter a atenção àquilo que se é, àquilo que o outro é.
Assistir ao filme Dias Perfeitos, do diretor Wim Wenders, materializou essa ideia do silêncio. Pra quem não assistiu ao filme, a premissa é simples como um haicai. O filme acompanha o dia a dia de Hirayama, um homem que trabalha limpando os banheiros públicos de Tóquio. Dia após dia, o homem segue uma rotina: acordar, dobrar seu colchão, escovar os dentes, aparar o bigode, molhar seus vasos, colocar o uniforme, tomar o café em lata, sair com a van do trabalho. Ele fala pouco e faz muito.
Entre uma privada e outra, entre um desprezo e outro, Hirayama para e vive o silêncio. Mesmo no caos de Tóquio, ele percebe sombras, tira fotos de árvores, enxerga o mendigo, escuta fitas cassetes. No silêncio em si, o homem pausa o tempo, vive aquilo que toca a sua alma e encontra a força-motriz dos seus dias “perfeitos”. No caso dele, a natureza e a arte.
No entanto, nem tudo é perfeito nas pausas. Há também dor, resignação, inadequação. É no silêncio que Hirayama vive as consequências de suas renúncias e os pesadelos em preto e branco da solidão. E, apesar disso, ele só continua a fazer o que sempre faz, confiante de que o movimento do corpo e da mente o levará de volta aos seus espaços de paz consigo mesmo.
Fiquei sensibilizada com um filme que me lembra da importância do silêncio. Da pausa. Do olhar. Da disciplina. E da atenção ao que se ama. Na correria dos dias, Hirayama é um revolucionário, alguém que avança na contracorrente dos smartphones, das realidades virtuais e das demandas de consumo. Apesar de não escrever, ele é um poeta, um cara que olha o mundo com olhos de novidade e ainda se encanta com ele.
Mais uma vez, o Japão volta a ser meu lugar de aspiração. Mesmo que seja um Japão inventado por um filme, mesmo que seja um Japão idealizado por mim.
COLAGEM DE DICAS
EVENTO: Mais um PUB & WRITING em Londres pra quem gosta de escrever ou é curiosa/ curioso para começar. Ainda tem vagas para o dia 17/04 (4ª feira) e para o dia 22/04 (2ª feira) às 18h45, no Prince Alfred (Maida Vale). Inscrições aqui.
LIVRO: The L-shaped room, da escritora britânica Lynne Reid Banks, é um livro escrito em 1960 sobre uma jovem solteira de 28 anos que engravida e se vê enfrentando os dilemas de uma gravidez não-desejada. Após ser expulsa de casa pelo pai, ela vai morar numa espécie de pensionato decadente, em um quarto em formato de “L”. O processo de adaptação ao quarto, aos novos vizinhos, às transformações do seu corpo e aos preconceitos de ser uma grávida não-casada acompanham o caminho de aceitação da maternidade e do bebê que nascerá. Para mim, além de bem escrito, ele é um testemunho de como muita coisa no mundo mudou nos últimos 60 anos para as mulheres – as pílulas anticoncepcionais, a liberdade sexual, a autonomia financeira – mas muito ainda continua igual – os estigmas contra as mulheres que fogem das estruturas clássicas de família, a dependência emocional, a dificuldade de equilibrar vida familiar e profissional.
Sobre Japão, Dias Perfeitos e as pausas