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Sobre as casas e a escrita
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Sobre as casas e a escrita

Quando a escrita vira casa e a casa vira escrita
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Estou escrevendo esta newsletter em um trem, saindo de Londres em direção ao litoral sul da Inglaterra. A ideia é chegar a Brighton, pegar mais um trem e em seguida um ônibus até Mill Lane. Esse rolê de quase três horas é para ir visitar a Monk’s House, a casa de Virginia Woolf de 1919 até a sua morte em 1941. Venho planejando essa visita há meses; finalmente, encontrei uma sexta-feira em que o museu estaria aberto e eu estaria disposta. Há um sol tímido por entre nuvens cinzas; em poucos minutos, elas ocultarão os raios primaveris.

Sou apaixonada pelos museus-casa. São espaços mistos, em que figuras notórias deixam de ser “apenas” seus talentos, suas obras, suas imagens públicas para serem pessoas comuns, com hábitos simplórios, camas pequenas, mesas de trabalho gastas e livros empoeirados. É como visitar a casa de um amigo próximo, ou melhor, ser uma espécie de ladrão, interessado só em invadir quartos, cozinhas, banheiros, escritórios pra observar. 

A partir da casa, uma legião de fãs como eu tenta compreender a origem da genialidade de seus ídolos: o que eles viam a partir de suas janelas? Quem era recebido nas suas salas de jantar? Quais eram suas rotinas de trabalho e de estudo? Havia diversão, prazer, tédio, sofrimento no íntimo daquelas paredes? Quem lavava a louça depois do jantar?

Com o privilégio de ter conhecido alguns museus-casa de autores e autoras no Brasil e no mundo, consigo perceber um padrão. Muito da alma do que é produzido por esses pensadores pode ser captado na decoração, nos objetos, na configuração dos cômodos, na cor dos ambientes. A casa de Jorge Amado e Zelia Gattai na Praia do Rio Vermelho, em Salvador, é colorida, viva, ventilada, repleta de obras de arte dos amigos, com varandas amplas pra fazer festas e um enorme jardim-floresta. Já a casa de Jane Austen em Chawton, no interior da Inglaterra, (ainda escreverei mais sobre essa experiência incrível) tem pé-direito baixo, uma lareira, papéis de parede com motivos florais-botânicos, um piano em que ela tocava todas as manhãs antes de tomar seu desjejum, uma micromesa onde ela escreveu seus últimos livros.

O poeta John Keats alugou um quarto e um escritório com vista para um jardim na casa de um amigo em Londres; a partir daquele local, colado ao parque Hampstead Heath, se apaixonou pela vizinha e escreveu seus mais belos poemas. Pablo Neruda construiu uma casa no pé de um morro em Santiago, no Chile, repleta de referências ao mar e a apelidou como “La Chascona” em homenagem à mulher que amava, Matilde Urrutia. 

Em resumo, viver é aquilo que a gente acumula: nossos amores, nossas experiências, nossas histórias e, por que não, nossos objetos, nossas roupas, nossas coleções, nossas fotos. Quando as pessoas se vão, o que ficam são os objetos. Sozinhos, podem ser só funcionais; atrelados a alguém que admiramos, podem ser materializações de um tempo, de um brilho, de uma história.

Ao participar do evento literário “Latitudes – Viajantes e Literatura” em Óbidos, Portugal, uma pessoa da audiência me perguntou o que eu considerava lar, uma vez que venho construindo a minha história pessoal e profissional em vários lugares, várias casas. Fiquei emocionada de pensar que, dentro de algumas semanas, farei mais uma mudança. Respondi que lar para mim é onde estão as pessoas que amo e meus livros. É preciso, portanto, cuidar bem deles.

PS: E sobre a visita à casa da Virginia Woolf? Descobri que ela tinha um quarto pra chamar de seu no fundo do jardim; segundo ela, o quarto construído pra essa função na casa principal era gelado demais. E a foto que ilustra a newsletter de hoje foi feita em sua sala de estar. Valeu a pena o rolê.


🔷 Crônica da quinzena

A cada duas semanas, postarei neste espaço uma crônica sobre meu cotidiano. Nesta edição, conto sobre a visita ao museu-casa da cantora portuguesa Amália Rodrigues e um morador inusitado.

O papagaio da Amália

Era para ser mais uma visita a um museu-casa. Sou alucinada por esses passeios a residências de pessoas notórias, me sinto uma voyeur ao observar a vida íntima de alguém por meio de sua casa. Além disso, as casas preservadas de décadas e séculos atrás são uma espécie de imagem 3D do cotidiano das pessoas que vieram antes de nós. Fica mais fácil imaginar como seria comer, dormir, se entreter, se assear no passado observando panelas, pijamas, pianos e pentes.

A casa escolhida para aquela manhã de sábado, em 2022, ficava na Rua São Bento, em Lisboa. Naquele endereço, viveu por mais de quarenta anos Amália Rodrigues, cantora de fado e uma das mais notáveis personalidades portuguesas. Eu não conhecia quase nada da sua história, do seu trabalho, dos seus feitos. Visitar o museu seria uma forma de aprender não só sobre Amália, mas um pouco mais de Portugal.

Ao chegar na casa, construída antes do terremoto de 1755, entendi o porquê de ela ser também um museu. A sala era circundada por azulejos azuis do século XVII-XVIII e guardava uma coleção de objetos ecléticos de decoração, peças de mobiliário clássico, pinturas com paisagens e retratos e, é claro, guitarras portuguesas. Tudo ali era pura energia e personalidade. Segundo a guia, aquela sala era um espaço de encontro de Amália com seus amigos para tertúlias de poesia e música. Acredito que eu me divertiria, e muito, em uma dessas festas "amaliescas". 

Passamos pela sala de jantar requintadíssima e, enquanto olhávamos jogos de talheres e de louça, comecei a escutar um barulho grave e constante. Não dei muita bola, achei que era algum tipo de manutenção sendo feita em outro cômodo.

Ao chegar na cozinha da casa, uma cena improvável para um museu: um papagaio cinza gralhando em cima de um poleiro. Eu não entendi nada. Era mesmo para ele estar aí? A guia foi até o animal e começou a acariciá-lo. “Este é o Chico, o papagaio de estimação da Amália”. Hã? Como era possível? Comecei a fazer contas. Amália faleceu em 1999, havia quase 23 anos... “Ele tem 31 anos”, a guia falou, como se percebesse a minha cara de ué. “Conviveu 8 anos com a Amália e ainda a chama pelo nome”. Enquanto me acostumava com a ideia de ter aquele papagaio ilustre entre nós, a guia notou que ele havia se enroscado na corda de metal que o prendia ao poleiro. “Desculpem, mas precisarei chamar a minha colega para desenroscar o Chico.”

Ficamos sozinhos com o animal. Olhávamos para ele e ele nos olhava de volta, irritado pela dor da corrente em sua pata. Compreendi que ele era o único ponto de conexão vivo entre mim e aquela mulher apaixonante e eu queria perguntar taaanta coisa pra aquele bicho… Como era ser um papagaio de alguém famoso? Amália cantava pra você? Você gosta de fado? Como é o sotaque de um papagaio português? Como é morar em um museu? Se você não estivesse preso, para onde voaria? Você se sente solitário? Qual a sua lembrança mais forte da Amália? Do que você mais sente falta dela? 

A guia voltou com sua colega e a mulher, em poucos instantes, soltou o pássaro. Não consegui fazer minhas perguntas, mas ele ainda assim me respondeu, com uma voz aliviada, esganiçada e (por que não?) emocionada:

“Bom diiia!”


🔷 Escrita & Colagem & Etc

Nesta seção, postarei o que tá rolando no meu trabalho como escritora, colagista, mentora de escrita. Ah, sempre haverá uma sugestão de exercício pra você começar a esboçar as suas histórias.

PUB & WRITING: A última edição do Pub & Writing desta temporada em Londres acontecerá dia 10/06, 2ª feira, às 18h45. Ainda não defini o local e nem criei o evento no Eventbrite, portanto, save the date e fiquem atentos / atentas às minhas postagens no Instagram. 

EVENTO LITERÁRIO: Acontecerá em Londres, no dia 31 de maio, a 1a Feira Literária Internacional em Língua Portuguesa, a FLILP. Haverá palestras, vendas de livros e encontros com escritores que escrevem em português. Participarei em dois momentos do evento: em uma mesa falando sobre aprender Escrita Criativa no Reino Unido e mediando uma mesa sobre a Literatura Escrita por Mulheres. O evento é gratuito, mas é necessário fazer inscrição; para isso, basta acessar este link.

EXERCÍCIO: Tente se lembrar de uma casa que visitou recentemente pela primeira vez. Como era a sua fachada externa, a porta de entrada, a sala, os quadros e porta-retratos? O que os objetos dessa casa dizem sobre as pessoas que vivem ali? Escreva sobre isso.


🔷 Colagem de Dicas

Nesta seção, um compilado do que tenho curtido na literatura, no cinema, nas redes sociais, no Substack.

LIVRO Ganhei da própria poeta e artivista mariam pessah seu último livro, meu último poema, publicado pela Editora Caravana. Foi uma leitura pausada, reflexiva, degustativa, como os bons livros de poesia devem ser. O bilinguismo da poeta transforma os versos do livro, deixando-os em oscilação entre o português e o espanhol, tornando-os território livre do sentido. Adorei a forma que a mariam brinca com as palavras, deturpando seus usos, refazendo seus sons, num interromper-prolongar da linguagem. Como temas, há a revolta e melancolia dos tempos pandêmicos, a corporalidade, a memória, os afetos. Um livro pra ser lido em voz alta, em silêncio, em looping.

NEWSLETTER: O jornalista Rodrigo Casarin tem uma coluna semanal no UOL chamada Página Cincoonde ele fala sobre livros e, há uns meses, ele criou uma newsletter homônima aqui no Substack para estender essas conversas literárias. Na semana passada, ele publicou um texto interessante sobre a necessidade de criar um público leitor mais parrudo no Brasil. Segundo ele, não podemos nos ater, como sociedade, a pensar na formação de leitores apenas nas novas gerações. É preciso seduzir de volta aquela criança leitora que deixou de sê-lo na fase adulta; apresentar livros de ficção àqueles que acham que a leitura deve ser pragmática (“se for pra perder tempo lendo, tenho que aprender algo!”) ou mostrar que a leitura pode ser um hábito cativante pra quem sempre odiou a ideia de ler. Vale a leitura.

FILME: Assisti há uns dias o filme Boa sorte, Leo Grande (2022, direção de Sophie Hyde), estrelado por Emma Thompson e Daryl McCormack. É um filme sobre as inseguranças de uma mulher viúva com mais de sessenta anos que nunca teve prazer sexual em seu casamento, e que decide contratar um garoto de programa. Praticamente todo o filme se passa no mesmo quarto de hotel, onde os personagens conversam sobre suas vidas e, pouco a pouco, vão superando seus medos para assumirem que são e o que querem. Trata-se de um filme terno e com um olhar feminino sobre questões como etarismo, intimidade, desejo.

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Olá, meu nome é Sandra Acosta, sou escritora, colagista e podcaster. Esse é um espaço pra compartilhar reflexões sobre escrita criativa, processos criativos, projetos artísticos e cinema.
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