Sobre Jane Eyre e os spoilers
Até que ponto saber sobre uma história atrapalha a experiência de leitura?
Há uns dias terminei de ler o romance Jane Eyre, da escritora inglesa Charlotte Brontë. Por uma casualidade feliz do cosmos, não sabia qual era o plot da história, nunca tinha ouvido um spoiler, nem assistido a nenhuma aula de literatura, tampouco visto uma das adaptações cinematográficas. Para um livro de quase 177 anos, considerado um dos grandes clássicos da literatura mundial, esse é um pequeno milagre, sobretudo quando a gente vive numa época de booktokers, influencers, filmes e séries que revisitam o passado a todo instante. Mesmo não querendo, os vídeos saltitam nos nossos olhos, laçam a nossa atenção, pisoteiam na nossa vontade e nos prendem até que vejamos tudo o que os algoritmos nos impõem a ver. Absorver detalhes sobre um clássico, portanto, é comum e, no meu caso, tendo a me culpar por ter demorado tanto para lê-lo antes de ser alvo dos spoilers.
Não que Jane Eyre seja um assunto sexy como batons, shakes, games, cursos on-line para se ter sucesso. Mas na minha bolha de interesse, livros sempre são assunto, ainda mais os clássicos. Ainda é bonito ver alguém vencer a preguiça, a rotina, a dificuldade de compreensão, o estilo rebuscado, o excesso de páginas e chegar ao fim de uma história escrita por alguém morto há séculos.
A leitura de Jane Eyre era objeto de desejo antigo, daqueles que você não ousa a começar sem saber que está preparada mental e fisicamente. Mentalmente porque ler um clássico significa lidar com palavras que a gente não conhece, construções linguísticas complexas, desconfortos ideológicos em virtude do período histórico. Fisicamente por ter que preparar o corpo para achar posição para braços, cabeça e pescoço durante a leitura de livros pesados por horas e horas a fio. Mas, encontrado o momento (chegada a Londres em pleno inverno), o pretexto (leitura junto a um clube de leitura – falarei deste tema em um artigo futuro), o meio (no meu caso, o kindle), comecei a ler Jane Eyre no fim de janeiro.
Após um início lento, fui sendo conquistada pela leitura a ponto de ficar ansiosa por minutos de leitura. Avançava a madrugada apenas para ler mais um capítulo. Me irritei, me angustiei, enrubesci, vibrei. Fazia tempo que não me empolgava tanto com um livro a ponto de, terminada a leitura, querer mais, saber mais, trocar mais.
Para mim, muito do entusiasmo deveu-se ao não saber. Compreender como Brontë vai sustentando a história e apresentando novos desafios e universos para o desenvolvimento da personagem principal fez toda a diferença. É como se eu me transformasse na testemunha de uma confissão e essa transparência-confiança me aproximasse da autora-personagem a ponto de considerá-la uma amiga. Além do puro prazer, compreender as inovações linguísticas e de estrutura na cadência das páginas de um romance como Jane Eyre ampliaram o meu repertório intelectual como leitora e como escritora.
Reflito sobre o que escrevo sobre livros e filmes nesta newsletter, nas minhas redes sociais, nas minhas rodas de conversa. Saber o limite entre instigar o interesse do outro e depreciar a mágica da descoberta é essencial, no entanto, esse limite pode mudar de pessoa a pessoa. Inclusive há quem não se importe com um spoiler ou outro. De fato, conhecer o desfecho de uma história ou seus principais desdobramentos não tiram a beleza de um clássico. Longe disso. Madame Bovary ainda será Madame Bovary, Memórias Póstumas ainda será Memórias Póstumas. Mas podem ofuscar o prazer de se surpreender com um clássico.
E você, o que pensa a respeito?
COLAGEM DE DICAS
FILME: Seguindo na linha do texto de hoje, assisti ao filme Jane Eyre (2011, direção de Cary Fukunaga). Considerando que deve ser uma tarefa hercúlea sintetizar uma obra de 400 e tantas páginas num filme de duas horas, a última adaptação cinematográfica da obra é bem satisfatória, sobretudo nos seus primeiros 60 minutos. A atriz que faz Jane, Mia Wasikowska, é quase perfeita na sua caracterização introspectiva e impetuosa. Já Mr. Rochester, vivido por Michael Fassbender, é taciturno e sedutor como o personagem de Charlotte Brontë, mas extremamente bonito – o que foge da proposta do romance (mas o faz mais apaixonante!). De qualquer forma, os cenários, os figurinos, as performances do filme tem a alma cinza e fria dos moors de Yorkshire, ilustrando como seria ser Jane Eyre naquele lugar, naquele tempo, naquela vida do romance.
LIVRO: Três é o terceiro livro da escritora Letícia Gomes e conta com 48 poemas sobre temas diversos como feminilidade, deslocamento, pandemia, paixão. Intercalado com ilustrações da artista Fabiana Lazzari, é uma obra delicada de uma poeta que vive a floresta, descobre seu corpo, observa o céu, questiona as palavras não-ditas, celebra os encontros, está atenta aos detalhes.
Essa é uma boa pergunta. Se você lê uma sinopse, ou às vezes até um resumo da trama, você só sabe o que acontece ali, mas não sabe como. Só saber os "fatos" ou temas de um livro não fazem a gente saber da experiência de ler o texto, então eu tenderia a dizer que não atrapalha tanto assim, mas a gente sabe que não é a mesma experiência quando você entra no livro sabendo o desfecho, ou os plot twists. E depende do gênero, claro: se for livro policial, aí já era, acho que em ficção científica também atrapalha um pouco. Quando saiu o último volume do Harry Potter, comprei na pré venda e li em dois dias porque não queria ouvir spoilers. Só que nisso, dei a mim mesma vários spoilers porque não tinha lido os anteriores ainda (só visto os filmes).