Ler Alice para ler o hoje
Como um clássico da ficção diz tanto sobre a sociedade que vivemos
Ler Alice no País das Maravilhas nunca foi um desejo, uma curiosidade, uma urgência. A história nunca me chamou a atenção, nem pra assistir à animação da Disney – talvez tenha visto quando era pequena, não sei; se assisti, não devo ter entendido nada. Quando vieram as versões live-action com o Johnny Depp, pior, virou um hype gigantesco, muitas bebês nascendo e virando Alices, filtros do Snapshat com a cara do Chapeleiro Maluco se misturando às nossas feições, trailer com cenas recheadas de cogumelos coloridos. Os personagens me pareciam amalucados e caricatos, apesar de a Alice em si ser fofa. Os anos passaram e eu me esqueci da história.
O motivo de ler o romance agora, depois dos quarenta e poucos anos, deve-se ao acaso. Eu escolhi o livro como tema da minha próxima oficina de escrita Vinho & Escrita (é só dar uma olhada no meu último Reels no Instagram). Só o fiz porque “Maravilhas” permitia um trocadilho bobo com “Maravinhas”, relacionando-se ao universo dos vinhos. E como poderia falar ou mesmo pensar em práticas de escrita sobre a história da Alice sem ter lido o livro? Aproveitei a minha ida recente a Londres e comprei uma edição caprichada, de capa dura e título em letras douradas. Comecei a lê-lo na viagem mesmo.
Segundo o filósofo e escritor Ítalo Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Ou seja, é um livro que, apesar dos séculos e das infinitas mudanças da sociedade, sempre permite novas interpretações. Alice no País das Maravilhas é um clássico. O livro começa com Alice correndo atrás do Coelho Branco, um sujeito angustiado por estar atrasado. Qualquer semelhança com o ritmo frenético das megacidades, as exigências capitalistas que determinam que “tempo é dinheiro” e o impulso insano de incluir mil e uma atividades às nossas rotinas não é coincidência. O Coelho Branco está sempre com um relógio de bolso nas mãos, mas o objeto poderia ser facilmente substituído por um smartphone com suas notificações implacáveis. Além de tudo, o Coelho Branco não tem nome, ele é só mais “um” em uma engrenagem opressora, mais um elemento correndo freneticamente atrás de compromissos e mais compromissos.
Alice, uma vez “dentro da toca do coelho” e fora da sua realidade, é uma personagem perdida. Ela não sabe ao certo o que faz ali, com quem deve falar pra voltar pra casa, como agir em meio a personagens esquisitos. Em alguns momentos, ela se agiganta, em outros, fica reduzida a um nada. Seu corpo se transforma sem que ela tenha controle dessas mudanças, o que influencia suas emoções, muitas delas extremadas, ainda pautadas na criança que é ou que há pouco foi. Ela chora um lago de lágrimas, dá respostas atravessadas (ou mal-educadas?) a quem não conhece, esquece de pegar a chave tão necessária para chegar ao “belo jardim”. Ao longo do romance, Alice vai se tornando mais consciente de que precisa ser sábia e se controlar nesse novo mundo, sem deixar de ser autêntica ou de expressar seus desejos.
Na busca pelo caminho de volta, Alice tenta se entender como indivíduo, alguém que está se tornando adulta em um mundo de adultos. Tal como Alice no País das Maravilhas, a leitura do entorno e de suas gentes faz parte do processo de crescimento de todos nós, em inúuuuumeras fases da vida: a nova escola, o vestibular, a faculdade, o novo trabalho, a nova família, a nova casa, o novo país. Ora somos grandes, nos sentimos fortes e fodas; ora somos diminuídos a seres menores, invisíveis e insignificantes.
Todos somos Alice na busca de quem somos e do que queremos no caminho da vida.
Um dos trechos mais curiosos do livro – que também dialoga com os tempos atuais – é quando Alice se vê em um tribunal. Ela fica feliz de reconhecer aquele ambiente por conta da leitura de livros que fez até então – uma piscadela de olho marota do Lewis Carroll de como a literatura ficcional antecipa a realidade e dialoga com ela constantemente. Enfim, no tribunal, o Rei cumpria o papel de juiz. Durante a cena, a gente percebe a inabilidade, a inconsistência e tirania do representante de maior influência ali naquele espaço: - “‘Você deve se lembrar’, reforçou o Rei, ‘ou eu ordenarei a sua execução.’” A Rainha, outra personagem memorável, pede que todas as cabeças de seus desafetos sejam cortadas, mesmo que saibamos que nenhuma delas é, de fato, cortada. O autor brinca com esses personagens esdrúxulos e explicita como o poder corrompe e transforma líderes em crianças birrentas que espalham terror a suas populações. Ao ler as falas da Rainha de Copas, imaginava nela a feição de presidentes e chefes de Estado impondo taxações absurdas, determinando o fim de Departamentos de Educação, propondo a mudança do nome do Golfo do México...
Ler Alice no País das Maravilhas foi uma surpresa boa, como se fizesse as pazes com a imagem do gato sorridente e sua frase manjada. No contexto do livro completo, ela volta a ficar genial.
E você, é fã da Alice? Qual outra passagem do livro/ filme dialoga com o nosso mundo de hoje, na sua opinião?
Colagem de Dicas ✨
Evento São Paulo: Mais uma edição do Vinho & Escrita em São Paulo! Será na próxima 4a feira, dia 09/04, às 19h00, no Les Vignobles de Demain (Vila Madalena). O tema do próximo encontro será Alice no País das Maravinhas e vamos falar sobre Identidade. Conhece alguém que pode curtir? Compartilha!
Newsletter: Ainda não li nenhum livro da escritora Fabiane Guimarães, mas sou leitora e fã da sua newsletter – inclusive assino sua versão paga. Em pleno puerpério da segunda filha, Fabiane é raçuda e mantém a mesma constância de publicação de textos no Substack. Pra quem é do universo literário, editorial ou apenas se interessa por textos interessantes a respeito de escrita, leitura e a profissão de artista, as conversas de Fabiane são repletas de boas informações, transparência e desejo de fazer acontecer. Um baita estímulo pra quem vive dando desculpas pra não encarar seus próprios projetos criativos.
Série de TV: Maid (Netflix, 2021) foi uma série que fez um sucesso danado durante a pandemia, eu me lembro bem. Mas, na época, não me deu vontade de assistir. Talvez fique com um pouco de ranço ao perceber muito burburinho em volta de um filme ou série. Mas, por conta da indicação de uma amiga, resolvi dedicar 10 horas da minha vida pra assisti-la. Além de falar sobre maternidade e violência doméstica, Maid é uma história que fala de resiliência, coragem (uma espécie de À procura da felicidade, versão feminina) e sobre o poder transformador das histórias. Antes de ter sua filha e se prender em um relacionamento abusivo, Alex ia fazer uma faculdade de Escrita Criativa, mas precisou desistir do programa. Ao estar no buraco das dificuldades, ela resgatou o ímpeto de escrever as histórias que estava vivendo enquanto empregada. E isso, de certa forma, a resgatou da escuridão e a levou para a luz novamente. Uma história tocante, com atuações impecáveis.
Conto: Essa dica é pra quem lê em inglês. Cuddlebug, da autora americana Jenna-Marie Warnecke é uma história contemporânea, que dialoga DEMAIS com o nosso mundo de hoje. A narrativa relata, em primeira pessoa, um dia na vida de um “cuddlebug”, um profissional que presta o serviço de abraçar pessoas em situação de necessidade afetiva. O rapaz em questão considera que essa é a sua missão de vida, ou seja, a capacidade de fornecer amor a quem esteja passando por períodos de luto, trauma, medo ou insatisfação. Durante toda a leitura, fiquei refletindo que, cada vez mais, esse tipo de serviço ou qualquer outro que estimule encontros presenciais vão ser demandados. O conto é sensível e cruel ao mesmo tempo, fiquei tocada pela forma como a autora construiu algo tão bonito a partir da tristeza e da solidão de uma metrópole como Nova York.
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Adoro o livro de Alice no País das Maravilhas. São tantas as metáforas, que é uma leitura a fazer várias vezes, para se descobrir sempre mais.
Sou super fã desse livro, li inúmeras vezes quando criança sem alcançar todo o significado até que o li depois de velha e percebi quanto é atual a história da Alice e a frase brilhante que foi banalizada, se você não sabe aonde quer chegar, qualquer caminho serve ... Adoro a cena do chá com o Chapeleiro Maluco.