Escrever é uma aventura rumo ao desconhecido
A alegria de ter Margaret Atwood como minha companheira de cafés-da-manhã
Um dos meus hábitos diários, depois de uma checada no celular ainda na cama, é tomar café-da-manhã enquanto leio um livro sobre escrita. A cada dia, leio em torno de dez páginas, o suficiente pra não tomar muito tempo e nem sobrecarregar a mente de ideias logo de manhã. Pra mim, cuja profissão está ligada ao tema dessas leituras, esse tipo de livro não é pra ser lido na correria dos deslocamentos, muito menos na hora do descanso, antes de dormir. O café-da-manhã se mostrou como o momento ideal, quando a mente está fresca a reflexões e devaneios, numa quase-continuação dos sonhos da noite.
Esse hábito começou neste ano e foi uma forma de dar vazão aos livros sobre escrita que vão se acumulando na minha estante. Nesse esquema de leitura, a passos lentos, já li o livro do Assis Brasil, da Elena Ferrante, da Annie Ernaux. Além disso, essa prática é uma tentativa de incluir a leitura a novos momentos do meu dia, substituindo minutos (ou horas) inúteis que passo nas redes sociais. Até agora tem dado certo.
O último livro lido foi o On writers and writing (originalmente intitulado Negotiating with the dead), da escritora Margaret Atwood. A autora canadense escreveu mais de 50 livros e sua obra mais conhecida é O conto da aia, que deu origem à série de sucesso The Handmaid’s tale. Nesse livro, Atwood faz uma série de reflexões acerca da escrita, do papel da escritora/ escritor, da leitora/ leitor, sobre o que é arte, a ideia que se tem dela e como conciliá-la com a vida ‘real’, onde todos nós precisamos pagar contas. A autora mune-se de inúmeras citações e exemplos mitológicos, filosóficos e literários pra desenvolver sua tese, dando ao livro um tom erudito, flertando com o acadêmico, o que torna a leitura difícil. Mais do que simplificar a discussão, Atwood quer aprofundá-la e elevá-la.
Uma das ideias mais interessantes desenvolvidas no livro é a que originalmente dava título ao livro – Negotiating with the dead. Pra autora, a escritora ou escritor é quem desce às profundezas do desconhecido, ou ‘mundo dos mortos’, conhece o que acontece por lá, negocia com os monstros ou mortos da escuridão a ponto de sair ilesa/ ileso e volta ao ‘mundo dos vivos’ pra contar o que viu. Isso porque todos os escritores aprendem a partir dos mortos e se nutrem de diversas camadas do passado, ainda que seja um passado imediato. Nossas referências vêm de quem escreveu antes de nós, das experiências compartilhadas por nossos ancestrais, daquilo que vivemos em algum momento ‘morto’.
A dificuldade da escrita, portanto, reside em mergulhar nessa aventura solitária rumo ao local onde as histórias são guardadas, garantir que você não será mantido presa/ preso na escuridão do passado, ultrapassar suas inseguranças no caminho de volta e retornar pra compartilhar o que aprendeu com uma eventual audiência. Nessa analogia, Atwood tira o caráter sobre-humano ou sagrado da/ do artista e o coloca como uma testemunha do que existe além.
Gosto dessa perspectiva apresentada pela autora pra pensar sobre a escrita. Mais do que um ‘possuir um talento nato’, viver uma ‘experiência xamânica’ ou a receber a visita de ‘musas da inspiração’, escrever é uma predisposição de aventureiros, um ousar sair da mesmice, é saber que há algo a mais na superfície dos dias e ter a coragem de contar algo que pode não ser ouvido. Escrever é saber que o legado importa e pode influenciar o futuro, é ter a esperança de que haverá um futuro.
Ah, como foram ricos os meus cafés-da-manhã com a Margaret Atwood.
Bons dias.
COLAGEM DE DICAS
EVENTO: Mais um PUB & WRITING aqui em Londres pra quem gosta de escrever ou é curiosa/ curioso pra começar. Será dia 08/11, às 18h45, no The Lamb Pub. Inscrições aqui.
PODCAST: O podcast IMIGRANTES, da Ana Freccia e da Lili Carneiro, me fez sentir saudades da época que fazia o podcast A HORA DA VIRADA. Nesse programa, elas entrevistam brasileiros que estão pelo mundo e suas experiências como imigrantes. É uma delícia conhecer novas histórias de coragem de quem resolveu mudar de vida em nome de um sonho, de uma ambição, de um desejo. Fica a dica pra quem mora fora ou planeja morar algum dia.
NEWSLETTER: A newsletter da Bárbara Bom Angelo, o QUERIA SER GRANDE MAS DESISTI, é um espaço em que ela escreve sobre escrita, literatura, jornalismo. E ela sempre dá dicas legais de conteúdo da internet, uma curadoria preciosa em tempos de excesso de informação.