Anatomia de uma queda e a Escritora
Um filme para se pensar nos limites da literatura, da ficção e da 'verdade'
(Atenção: este texto pode ter alguns spoilers)
Quase todo muito que assistiu ao filme Anatomia de uma queda (direção de Justine Triet, 2023) deixou-se envolver pela história de 2h32 sobre uma morte ocorrida no meio dos Alpes Franceses, onde Sandra – a esposa da vítima – é a principal suspeita. Confesso ter achado o filme estranho, com um final estranho. Mas, após refletir melhor sobre essa questão, acredito ter o péssimo hábito de esperar histórias ‘redondas’, reviravoltas surpreendentes, desfechos mirabolantes, sobretudo de filmes de suspense. Uma herança herdada de anos e anos assistindo a filmes hollywoodianos em sessões da tarde.
Anatomia de uma queda me ganhou quando coloca em debate os limites da literatura e a suposta ‘realidade’ vivida por todos nós. Uma das cenas que mais me chamou a atenção durante o filme ocorreu durante uma fala do advogado de acusação. Sandra é uma escritora bem-sucedida de livros de auto-ficção e o advogado, nesta cena, utiliza trechos escritos por ela para provar que a autora usava fatos de sua vida pessoal como matéria-prima de suas histórias. Até que ele lê um fragmento de um romance em que a personagem está insatisfeita com seu casamento e deseja matar o seu marido. Segundo o advogado, isso seria indício de uma possível tendência assassina da escritora.
Achei curioso ver em um tribunal, ainda que fictício, a leitura de uma obra literária. Naquele espetáculo jurídico-criminal, o livro sai do universo do entretenimento e ‘pula’ para vida real, onde pessoas podem matar, serem acusadas, defendidas, presas, absolvidas. Esse salto entre ficção e realidade não é banal. Enquanto a acusada era uma escritora vivendo num chalé esquecido no meio de montanhas, suas obras eram literatura e, portanto, ‘inofensivas’. Como em qualquer livro autoficcional, já não importava à leitora ou leitor de Sandra saber quais elementos de suas histórias eram, ou não, ficcionais, desde que transmitissem uma ‘verdade’ em termos de sentimento e se tornassem críveis durante a leitura. No tribunal, quando um livro deixa de ser literatura, tudo o que é escrito passa a ser ameaça, prova, denúncia – até mesmo a ficção embutida nessas histórias. Assim, as perguntas inevitáveis surgem: o que é verdade nos livros de Sandra? O que é verdade para Sandra? Quem é Sandra?
Outra discussão abordada pelo filme é o de roubo de uma ideia literária. Durante uma das brigas do casal, Samuel – marido de Sandra – grava a discussão. Nela, Samuel acusa Sandra de roubar sua ideia para escrever um livro. Segundo a acusação, essa seria mais uma prova da frieza de Sandra perante a sua relação com o marido. A escritora se defende, dizendo ter usado apenas uma inspiração do marido e construído um universo a partir de suas próprias ideias. Essa fala me fez lembrar do livro A Grande Magia, da escritora Liz Gilbert. Nele, Gilbert fala sobre a fluidez das ideias: se não as utilizamos, elas migram para outras mãos para serem, enfim, colocadas em prática. No filme, Sandra era uma escritora experiente e, pelo jeito, prolífica. Valeria a pena deixar uma boa ideia parada nas mãos do inseguro marido-escritor? Para ela, pelo jeito não. Taí uma conversa boa sobre ética na Literatura e nos meios editoriais.
Por fim, por que Samuel estaria gravando uma discussão do casal? Segundo a defesa de Sandra, esse era um artifício do marido para coletar frases e ideias para seu projeto de escrita. Inclusive, cogitou-se que a briga foi provocada por Samuel para ter o que escrever mais tarde. De certa forma, Samuel poderia ser um dos que consideram a Literatura maior do que a vida, fazendo tudo o que gira ao seu redor ser material para suas histórias. Não seria, então, a sua morte o desfecho perfeito para um futuro romance a ser finalizado pela esposa-bestseller?
Semanas após assistir ao filme, ele ainda rende conversas internas e uma insistência em lembrar da música chata do 50 Cent. Assim sendo, Anatomia de uma queda é mesmo um filme excelente.
COLAGEM DE DICAS
EVENTO: Mais um PUB & WRITING em Londres pra quem gosta de escrever ou é curiosa/ curioso pra começar. Ainda tem vagas para o dia 12/02 (2ª feira), às 18h45, no The Star Tavern. Inscrições aqui.
FILME: Assisti pela segunda vez a animação Kiki’s Delivery Service (direção de Hayao Miyazaki, 1989) e tive uma impressão diferente da primeira. Dessa vez, o filme se mostrou mais ‘adulto’ ao falar do processo de amadurecimento de uma bruxa de 13 anos em uma nova cidade e todos os percalços que ela enfrenta nesse período. Os medos, as inseguranças, as novas amizades, as descobertas de uma personagem pra lá de humana: tudo está ali, como um bom filme do Studio Ghibli. Tornou-se um dos meus favoritos.
MÚSICA: O vídeo da Tracy Chapman e do Luke Combs cantando Fast Car no Grammys Award é uma espécie de viagem ao tempo. Lindo de ver.
Adorei a sua análise do filme! Estas cenas me pegaram muito. Confesso que demorei para me envolver mesmo com o filme, mas achei que na hora em que ela vai ao tribunal, ele vira um espetáculo.