Quando a gente pensa em uma escritora ou escritor, sobretudo os retratados em filmes, sempre vem à mente um sujeito introspectivo e de cabelo desgrenhado, cercado de bitucas de cigarro e papeis soltos pela mesa, tendo como única companhia seu instrumento de escrita, seja ele um caderno, uma máquina de escrever, um laptop. Tirando que nem todos os escritores ou escritoras fumam, ou são desorganizados, a escrita é, na maioria das vezes, realizada em meio à solidão.
Há umas semanas, li um artigo no Financial Times Magazine com o seguinte título The myth of the lone writer (O mito do escritor solitário), do colunista Simon Kuper. No artigo, Kuper fala dos casos históricos de escritores e pensadores célebres que tiveram apoio e parceria técnica de suas esposas, mas não lhes deram os devidos créditos e respectivos triunfos perante a sociedade. Ele poderia ter conduzido o texto do ponto de vista do machismo, em que inúmeras mulheres se mantiveram na sombra de seus maridos sem nunca terem enxergado a luz do reconhecimento. No entanto, ele se questiona se a escrita é mesmo solitária e, uma vez sendo, por que a colaboração ainda é vista como tabu em oposição a outras indústrias criativas?
Na música, a parceria entre compositores é supercomum na composição de uma melodia ou letra. Paul McCartney e John Lennon, por exemplo, foram mestres nessa sintonia criativa. O processo colaborativo pode ser visto também no cinema, na publicidade, na moda. Mas na elaboração de um livro, há um ranço de que não pode haver interferência ou influência de ninguém sob o risco de que a escrita perca sua genialidade. Imagina a confusão que seria descobrir que Cem Anos de Solidão ou Os miseráveis são frutos de parcerias de seus autores com outras pessoas?
Como contraponto, o autor lembra de dois casos em que a escrita pode ser colaborativa. Uma é no caso dos roteiros de séries de TV, onde são formados grupos de trabalho para a criação dos episódios de uma temporada. Quanto mais diversa, experiente e engajada é uma sala de roteiro, mais uma série será capaz de retratar a riqueza das relações humanas. Por fim, Kuper cita a especulação por volta do mito Elena Ferrante. Segundo o autor, a figura ferrantesca nada mais é do que um grupo de trabalho formado pela tradutora Anita Raja e o escritor Domenico Starnone. Nunca havia pensado em Ferrante como uma espécie de sala de roteiro que usa a genialidade e a complementariedade de dois autores para criar obras-primas e fenômenos de venda.
Refletindo sobre a autoria na literatura, ainda sinto uma energia individualista e egoísta pairando no conceito do que é autor ou autora. É como se dependêssemos do crítico ou do mercado editorial para designar quem é ou não é a estrela da vez e essa dificuldade fizesse com os elegidos se protegessem em seus Montes Olimpos. Qualquer parceria ou apoio pudesse ser uma ameaça na manutenção de um espaço ao sol, ou ainda um sinal de falta de ‘talento’. É claro que os coletivos de escrita, saraus e grupos de trabalho pipocando por aí estão para mostrar que há exceções. Mas a colaboração entre escritores e escritoras normalmente acontece a posteriori, quando o trabalho criativo está pronto.
Se o tabu da colaboração na escrita não existisse, quem sabe não teríamos menos mulheres apagadas pela história, livros mais complexos e instigantes ou ainda conheceríamos a identidade por trás da Elena Ferrante? Só vejo vantagens.
COLAGEM DE DICAS
LIVRO: As pequenas virtudes é um livro de ensaios da escritora italiana Natalia Ginzburg, publicado em 1962 na Itália e 2020 no Brasil. A autora ficou mais conhecida ao ser mencionada por Elena Ferrante como sendo uma de suas influências literárias. O livro tem onze artigos, divididos em duas partes. A primeira se dedica a textos mais corriqueiros, sobre a vida cotidiana e me lembraram a linguagem das crônicas. Na segunda parte, estão textos mais reflexivos e filosóficos, frutos da sabedoria de quem viu a vida em seus altos e baixos, e sabe traduzi-la na forma de palavras. 123 páginas de puro deleite.
SÉRIE DE TV: Um dia (2024) é uma série da Netflix sobre um casal que se encontra numa festa de formatura em 1988 e, entre encontros e desencontros, vai amadurecendo a relação de amizade e amor ao longo dos anos. É baseado no livro homônimo do escritor britânico David Nicholls e já tinha sido adaptado para o cinema, tendo a atriz americana Anne Hathaway no papel de Emma Morley. Eu tinha curtido o filme, gostava das atuações, mas o pessoal do Reino Unido criticou demais o sotaque de Leeds forçado de Hathaway – tá aí algo difícil de ser perceptível por alguém não-nativo. Voltando à série: ela é fiel à história e os atores têm uma sintonia fofa, a ponto de nos deixar devastados com a proximidade do fim – da série, do tempo, da vida.
EVENTO: Mais um PUB & WRITING em Londres pra quem gosta de escrever ou é curiosa/ curioso para começar. Ainda tem vagas para o dia 18/03 (2ª feira) e para o dia 20/03 (4ª feira) às 18h45, no The Wheatsheaf. Inscrições aqui.
Já é a quarta ou quinta recomendação positiva de "Um Dia", vou acabar assistindo depois de ter pulado o filme por ter ODIADO o final encontrado pelo autor para o livro.