A garota da agulha e a perversidade
Uma história lindamente contada sobre nossa faceta mais cruel
1.
No livro O que você está enfrentando, da escritora norte-americana Sigrid Nunez, a personagem-narradora diz: “não importa quão triste seja, uma história lindamente contada nos eleva”.
2.
Foi a sensação que tive ao assistir A garota da agulha, do diretor Magnus von Horn. O filme fez parte do Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela Folha de S. Paulo e a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP no Museu da Imagem e do Som (MIS). Além do filme, houve um bate-papo entre uma psicanalista e um crítico de cinema a respeito da história contada na tela.
3.
Esse tipo de evento me faz gostar de São Paulo.
4.
A garota da agulha concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Acabou perdendo para Ainda estou aqui, de Walter Salles. Poderia ser que em outro ano, com outros concorrentes, o filme ganhasse. Assim como Central do Brasil, de Walter Salles, teve azar ao concorrer com A vida é bela, de Roberto Benigni, em 1999.
5.
Eu me divirto com conspirações mirabolantes, como se o Oscar fosse racionalizável, como se a Arte se pautasse em variáveis deslocáveis no tempo.
6.
O longa dinamarquês conta a história de Karoline, uma operária na Copenhague entreguerras. Após ficar sem notícias do marido que foi lutar no front, uma operária se envolve com o chefe e fica grávida. Abandonada pelo progenitor do bebê, ela se vê sozinha, sem emprego, morando em condições insalubres. Quando o marido volta, desfigurado e transtornado pelos traumas de guerra, a mulher resolve dar fim àquela situação e se vê na casa de uma mulher que a acolhe. É ali que o terror do filme atinge o seu ápice. O que parecia não ter como ficar pior, fica. E muito.
7.
O filme é baseado em uma história real.
8.
A garota da agulha foi gravado em preto e branco, com altos contrastes entre a escuridão dos ambientes degradantes em que Karoline sobrevivia e a luz dos poucos momentos de liberdade vividos pela protagonista. A trilha sonora também reforçou o tom do desespero, uma avalanche de notas graves de violoncelos e baixos intercaladas com o estridente dos violinos. O filme bebeu na fonte do Expressionismo Alemão, criando um diálogo entre forma e história, uma vez que a Alemanha foi a grande derrotada da guerra que permeia a narrativa do filme.
9.
O diretor não aliviou a mão na hora de chocar, mostrando o lado perverso de uma sociedade que não perdoa quem foge da “normalidade” ou das “convenções de classe”. A aristocrata que não aceita o casamento do filho com a pobre, o veterano de guerra que vai para o circo por sua deformidade, a grávida que precisa parir no meio do turno, a mulher que se propõe a ficar com os bebês de quem não pode sustenta-los. Ninguém se salva.
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Ainda que a violência permeie todas as camadas sociais e gêneros, ecoando as agruras de uma guerra que não poupa nem vitoriosos, nem perdedores, A garota da agulha mostra o quão frágeis e vulnerabilizadas são as mulheres nesse contexto. Quais eram as perspectivas de uma mulher cujo marido vai pra guerra, sem posses, sem benefícios sociais, sem salário, com um filho de um cara que a abandonou? Quem olha por ela e como ela poderia olhar por si própria?
11.
Quantas mulheres sofrem esse mesmo desamparo afetivo, social e econômico, hoje em dia, a poucos quilômetros de casa?
12.
Ao término do filme, a plateia ficou em silêncio, como se tombada pelo peso de uma história sinistra. Em O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde escreveu: “É o espectador, e não a vida, que a arte de fato espelha.” Porque é arte, porque é Alto Cinema, A garota da agulha provoca, cutuca, machuca, revela a nós mesmos.
Naquela noite, em uma sala de cinema, enquanto doía ver nossa faceta mais cruel, éramos, ao mesmo tempo, elevados lindamente.
Colagem de dicas ✨
Episódio de podcast: Não sou muito fã do Bookster – Pedro Pacífico como entrevistador, mas ele tem o mérito de convocar excelentes entrevistados para seu podcast Daria um livro. Ontem, enquanto costurava caderninhos para o Vinho & Escrita, escutei dois episódios com dois escritores incríveis: Jamil Chade e Dráuzio Varella. Por motivos e circunstâncias diferentes, ambos os entrevistados mostraram sabedoria, conhecimento e humildade ao falarem do seu trabalho criativo. No episódio de Chade, teve o bônus de ele sintetizar um diagnóstico da decadência da sociedade norte-americana, tema do seu próximo livro.
Série de TV: A série espanhola O tempo que te dou (Netflix, 2021) foi indicada por alguém há uns anos e eu coloquei na minha lista para assistir. Esqueci. Felizmente, resgatei essa pérola das profundezas do esquecimento. Primeiro trunfo: a série trata de relacionamentos conturbados e eu amo histórias de quem sofre por amor (nada de violências físicas ou psicológicas, só aquela sofrência normal dos desencontros da vida). Segundo: a duração. Cada episódio tem apenas 11 minutos, delícia. Terceiro: a forma. A série é não linear e intercala passado e presente para contar a história de uma relação amorosa que termina. O primeiro episódio mostra um minuto de presente e dez minutos de passado; o episódio dois revela dois minutos de presente e nove de passado, assim sucessivamente. O tempo que te dou mostra, sob a perspectiva feminina, a dificuldade de seguir em frente quando o que passou ainda precisa ser processado e curado. É uma série que inova ao falar do amor, o mais abordado e talvez o complexo dos sentimentos humanos.
Evento: Mais uma edição do Vinho & Escrita em São Paulo! Será no dia 21/05, às 19h00. O tema do próximo encontro será Um vinho todo seu, baseado na obra Um teto todo seu, da escritora inglesa Virginia Woolf. No evento, vamos falar sobre Autonomia. Inscrições no site do Sympla.
Adorei as dicas!! Valeu!
Li sem respirar. Excelente texto. Denso e profundo!! Parabéns, Sandrókinha!!!