Há uns meses, tive a chance de conhecer um museu dedicado à vida e à obra do escritor português José Saramago. Fica em Lisboa, na Rua dos Bacalhoeiros – amo esse nome! –, quase de frente ao Rio Tejo e a poucas quadras da Praça do Comércio, um dos principais pontos turísticos da cidade. Como já disse algumas vezes por aqui, uma das minhas alegrias da vida é visitar museus, casas, bibliotecas ligadas ao mundo literário e estranhei que eu não soubesse da existência desse museu até recentemente. Precisei sair de Portugal para conhecê-lo. Poderia ter pesquisado a respeito, é claro, mas a Casa Fernando Pessoa me parece ser mais divulgada, indicada, enaltecida. Camões e Pessoa são os grandes cânones da Literatura Portuguesa, mas Saramago ganhou o maior prêmio de todos. Não é qualquer um que vai até Estocolmo receber um Nobel de Literatura, não é mesmo?
A visita é interessantíssima. A começar pela Casa dos Bicos, edifício secular com inúmeras funções, presenças e conformações ao longo dos anos. Inclusive, nas suas bases estão ruínas de uma muralha do Império Romano, assim como explicações sobre a origem de Lisboa, algo que eu desconhecia. Curioso pensar como, desde o início do início, Portugal existiu em função do rio, do mar, da pesca, do peixe. Quando subimos um lance de escadas repletos de frases memoráveis de Saramago, chegamos ao recinto onde a história do autor começa a ser contada. Desde a infância em Azinhaga, a mudança para Lisboa, o trabalho como serralheiro mecânico, a vida de funcionário público, tradutor, editor e, finalmente, escritor. No museu, estão fotos pessoais e oficiais, um breve resumo de cada um dos livros publicados e seus manuscritos, a medalha conquistada na ocasião do Nobel. Para uma novata no universo de Saramago, foi um belo início.
Após postar uma resenha literária sobre minha primeira leitura de José Saramago, O conto da ilha desconhecida, conversei com uma amiga portuguesa a respeito do autor. Ela mencionou existir um certo conflito entre os portugueses e a figura de Saramago, o que me deixou, a princípio, surpreendida e, depois, não tanto. Segundo ela, há algumas razões para isso: nas escolas, as crianças e adolescentes são obrigados a ler os livros em uma fase em que não estão maduros o suficiente para tal; Saramago, ao fim da vida, foi viver na Espanha, após críticas, sobretudo da Igreja Católica, ao livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo; e, por fim, pelas declarações feitas por ele a Portugal por se sentir excluído do grupo de intelectuais locais.
O tema é complexo. Pode ser que o Saramago tenha sido mesmo um sacana com Portugal e o escambau. Pode ser que não. Aliás, essa posição talvez nem seja unanimidade, afinal de contas, Saramago, aqui no Brasil, tem uma reputação considerável. Mas queria pegar esse gancho para refletir sobre o desconforto existente na Literatura entre criação literária, sucesso editorial e reconhecimento de prêmios. Como se talento ou “genialidade” não fossem medidos pelas vendas de livros e nem quantidade de medalhas conquistadas, pelo contrário, até desabonariam um autor ou autora que conquistassem espaço midiático a partir disso. Essa associação seria ainda mais forte entre os seus, ou seja, numa comunidade de escritores ou, dependendo da dimensão, num território nacional. Lembrei-me dos casos do Paulo Coelho e da Elena Ferrante – sem comparar suas obras, apenas o fenômeno –: fora do Brasil e da Itália, respectivamente, são ovacionados, traduzidos, adaptados para o audiovisual; dentro de seus países, não existe, nem de perto, o mesmo hype.
Um dos meus professores vai na mesma linha ao declarar que “nada de bom tem sido produzido no Brasil nos últimos anos” e “não confiem em nada que saia de prêmios literários”. De fato, por mais que os prêmios tentem se mostrar mais diversos e idôneos, sempre haverá a subjetividade da escolha baseada em um conjunto de experiências e referências dos jurados.
Confesso que essas opiniões extremadas não me pegam. Às vezes, me parece hipocrisia ou pura inveja. Como escritora, eu amaria ganhar um prêmio literário parrudo ou ser best-seller. Afinal de contas, quero ser lida, pagar contas e sonhos, trocar percepções com meus leitores e leitoras. Em qualquer outra profissão, a ambição, o sucesso, o reconhecimento são vistos com bons olhos, enquanto nas artes me parece ser necessário que as intenções do artista sejam imaculadas, intocadas pelo capitalismo, e existirem por existir. A arte pela arte para ser arte.
Prefiro testar os meus gostos e ler de tudo, do clássico ao experimentalista, e chegar ao novo fenômeno da lista de mais vendidos. Pode ser que goste de um livro, não goste de outro. Além disso, continuo vibrando quando um gringo me diz que amou O Alquimista, quando A amiga genial ficou em primeiro na lista de melhores livros do século XXI no New York Times ou quando me vejo animada a ler o meu próximo Saramago. Ao fim, tudo isso quer dizer que os livros estão ainda por aí, imunes às polêmicas e fazendo as pessoas refletirem sobre seus mundos.
Colagem de Dicas
Filme: Drive my car (2021, do diretor Ryusuke Hamaguchi, disponível na Netflix) ganhou inúmeros prêmios, inclusive o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2022 (breve parêntesis: meu professor diria “Nunca confie num filme que ganhou o Oscar!”, rs.) É um filme baseado num conto do escritor japonês Haruki Murakami e trata de temas como o luto, o recomeço, a aceitação de que nunca conhecemos por completo as pessoas que amamos. Percebi que o que mais me atrai nos filmes, livros e animações japoneses ou que se passam no Japão é essa reserva dos sentimentos, uma espécie de recato de expressão. Em geral, ninguém explode ou se desespera, o que me parece ao avesso quando comparado à cultura latina. Acho bonito ver a possibilidade de ser diferente. Nesse filme, há muitos silêncios, deslocamentos, respeito. Lindo.
Livro: Mulheres de Machado é uma coletânea de contos do Machado de Assis cujas personagens centrais são femininas. Muitos dos contos deste livro são justamente da fase romântica, aqueles em que as donzelas aguardavam o amor perfeito para poderem se casar. É um recorte interessante sobre as relações de gênero no fim do século XIX, ou seja, a visão da mulher como aquela que casa, tem filhos, cuida da casa (“a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica”). Ainda assim, Machado flerta com pequenas transgressões como a mulher que não quer se casar (conto “A desejada das gentes”), a mulher interessada na herança de um velhote (conto “A melhor das noivas”) ou a vaidade das mulheres que querem se manter jovens pelo maior tempo possível (contos “Uma senhora” e “O segredo de Augusta”). Os melhores contos, na minha opinião, são justamente os mais famosos: “Uns braços” e “A missa do galo”. Nos 17 contos do livro, Machado de Assis quebra a barreira entre autor e leitor, e narra as histórias por meio de um texto limpo, ágil, erudito, sem ser rebuscado e flerta com a ironia que se tornaria latente em “Memórias Póstumas” e “Dom Casmurro”.
Série de TV: De volta aos 15 é uma série nacional produzida pela Netflix, baseada no livro homônimo da escritora Bruna Vieira. É composta por três temporadas e conta com Maísa e Camila Queiroz no papel principal de uma menina/ mulher que viaja no tempo entre os seus 15 e 30 anos. Comecei a assistir a série pensando no meu interesse em séries teenagers e na vontade de acompanhar mais de perto o o audiovisual produzido no Brasil. No final das contas, por meio dos personagens e da narrativa envolvente, me vi refletir sobre a importância das amizades, das escolhas que fazemos ao longo da vida, da coerência entre o que se é e o que se quer ser. Maratonei.
Adorei. 🍒🌿
Excelente texto 👏👏👏