Minha visita ao morro dos ventos uivantes
Quando visitar um lugar literário se torna uma experiência de vida
Em junho deste ano, fiz uma viagem de quatro dias para o norte da Inglaterra com dois propósitos. O primeiro era conhecer Haworth, a cidade em que as irmãs Brontë, escritoras canônicas da literatura mundial, moraram por grande parte de suas vidas. O segundo era o de me reconectar com a minha escrita, usando o tempo livre e a inspiração daquele espaço para ter novas ideias e colocá-las no papel.
Na prática, para um retiro de escrita, seriam necessários mais dias. Apenas para se chegar ao vilarejo na região dos moors ou charnecas de Yorkshire, foi necessário pegar metrô, dois trens, um ônibus e subir uma ladeira gigantesca. No meu caso, a ladeira talvez tivesse sido o trecho mais difícil da viagem porque carregava uma mala com itens da minha mudança para o Brasil. Então, para quem não tem carro, é quase um dia inteiro tomado por deslocamentos entre Londres e Haworth. O transporte funciona, mas requer disposição.
No entanto, quando cheguei no meu Airbnb, todo o esforço da viagem foi recompensado. Fiquei em um quarto numa centenária casa de pedra, a dois passos da igreja na qual o Sr. Brontë, pai das escritoras, trabalhava como pastor. Ao lado da igreja, um cemitério antigo, com lápides semelhantes às vistas nos desenhos animados. Um pouco mais adiante, a própria casa em que elas moraram, hoje transformada em museu. Dentro do quarto, uma homenagem não só às escritoras, mas também à estética do século XIX. Para uma apaixonada pelo antigo, pela história, pelos lugares com personalidade, senti que havia achado meu canto no mundo.
Estar ali, numa cidade micro no interior da Inglaterra, tinha também como objetivo o de desacelerar. Eu já vinha na toada de me conectar com o ritmo da natureza e o silêncio porque tinha recém-concluído o Caminho de Santiago. Numa cidade turística e de passagem como Haworth, nada acontece num domingo à noite ou numa segunda-feira pela manhã. Ou então acontece, basta ver. Num dos poucos pubs abertos durante a noite dominical, um maluco cantava como se estivesse no palco do Rock in Rio. As árvores do cemitério se moviam no ritmo dos fantasmas que circulavam por ali. A chuva escorria pelas telhas tortas e se espatifava no chão de paralelepípedos desgastados pelos séculos.
Visitar a casa das irmãs Brontë foi memorável. Logo na entrada está o melhor da casa: a sala de estar, local em que Charlotte, Emily e Anne escreviam seus poemas e romances. Fiquei emocionada de pensar que o próprio local de criação artística das irmãs era compartilhado, o que implicava numa inevitável troca de ideias, influências e sugestões. No frio e umidade daquele recinto com iluminação precária, num casarão perdido no meio do nada, sem ergonomia na mesa e cadeiras, essas mulheres escreveram calhamaços à mão, com suas penas e tinteiros. O mais notável de tudo é que seus romances ainda são lidos, replicados, adaptados, cultuados por leitores de todo o mundo.
No dia da minha volta, resolvi me arriscar e fazer a trilha para conhecer o local que inspirou Emily Brontë a criar a casa principal do romance O morro dos ventos uivantes. Arriscar porque a trilha tinha extensão de 10 km entre ida e volta, e eu ainda teria que fazer a minha peregrinação de volta a Londres naquela tarde. Decidi ir por saber que me arrependeria caso não fosse. Peguei um táxi que me deixou no início da trilha. O celular já estava sem sinal, lembrei-me de que não havia comigo nem lanchinho e nem guarda-chuva, minha bota de couro com salto de 5 cm não era o mais adequado para trilhas na terra, as placas eram escassas e, por vezes, inelegíveis. Mas seguia a trilha e a memória das pesquisas que havia feito sobre o caminho. Eis que, isolada em uma das colinas da paisagem, avistei as ruínas. Além de mim, só havia o vento, que sim, é uivante. Ao chegar, encontrei os vestígios de uma casa de fazenda isolada de tudo e de todos, com paredes ruídas pelas intempéries do clima úmido. A lenda diz que Emily, ao fazer suas inúmeras caminhadas pelas charnecas, usou como referência aquela casa para criar o lar de Cathy e Heathcliff. Na minha ideia, Wuthering Heights era maior, mais imponente, sombria.
Não sei se o que mais gostei foi dar uma “cara” àquilo que já tinha imaginado ao ler o romance ou simplesmente estar ali, naquela solitude vívida, em meio ao vento, aos heaths, aos pássaros que se deixavam levar com as correntes de ar. Tirei algumas fotos, mas nenhuma demonstrou a real amplitude e a força daquela paisagem no meu corpo.
Na volta, passei por um rio, uma mini cachoeira, campos de ovelhas; caí ao virar o meu pé, enfrentei chuva, comecei a ver outras pessoas, tanto locais levando seus cachorros para passear quanto turistas como eu. Cheguei de volta a Haworth, sã e salva. O tempo foi suficiente para ainda tomar uma half pint, comer um English breakfast e recapitular a aventura da manhã para nunca mais esquecê-la.
Colagem de dicas
Podcast: Nesta semana saiu o 2o episódio do meu podcast em parceria com o Jornal Nota, o Clube do Livro Curto. Nele, apresentamos a você "O amor e a sua fome", da escritora Lorena Portela. Escolhemos este livro porque Lorena usa a linguagem de forma magistral. Aquilo que era afrontoso e espevitado na meninice de Dora, ganha suavidade e curiosidade com a adolescência, até culminar no amadurecimento e desarticulação. Assista ao nosso bate-papo com Lorena Portela sobre O amor e a sua fome no YouTube ou ouça-o no Spotify .
Série de TV: Assisti recentemente às duas primeiras temporadas da série Sissi, disponível na Globoplay (descobri que uma 3a temporada acabou de sair na Europa). Nela mergulhamos na vida de Sissi, que se tornou a imperatriz do Império Austro-Húngaro ao se casar com o Imperador Francisco José. Os cenários e figurinos são maravilhosos, puro luxo. Além disso, Sissi é atrevida, perspicaz, sabe o que quer e mexe seus pauzinhos a favor da diplomacia entre os países (sempre a favor do seu próprio, é claro). A primeira temporada é melhor que a primeira, com um ritmo mais dinâmico.
Excelente texto 👏👏👏