Nesta semana, eu e minha amiga fomos assaltadas em São Paulo. Dois caras roubaram celulares, bolsa, documentos. Levaram também a aparente liberdade de ir e vir, o prazer de caminhar à noite na rua, a tranquilidade de chegar ilesa em casa. Em contrapartida, deixaram o prejuízo na compra de um celular novo, a perda de tempo no bloqueio e transferência de aplicativos, o transtorno de fazer novos documentos – no caso da minha amiga –, o pessimismo melancólico sobre o futuro, as marcas digitais ao tentarem levar os meus anéis.
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Quando fomos abordadas, senti que a vida levada até então tivesse sido interrompida. Foi como se uma fenda no espaço-tempo abrisse, dando passagem àquilo chamado “vida real”. “Real” porque é violento. “Real” porque é o que acontece nos filmes, seriados, noticiários e relatos. A violência me engoliu também.
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“Menos mal que vocês estão bem”, falou o garçom do boteco que nos acolheu logo após o delito. “É verdade, estamos bem”, respondi enquanto meus dedos tremiam.
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Ao fazer o B.O., a atendente da polícia nem perguntou meu sobrenome. Sou parte da estatística.
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Há uns dias, a escritora Lorena Portela escreveu em seu Instagram a respeito do livro “Rinha de galos”, da equatoriana María Fernanda Ampuero . Ela comentou como a leitura a havia comovido a ponto de desejar ter escrito aquele livro. Isso porque nele a violência está explícita, com um reconhecimento de quem “se nega a fingir que uma parte considerável da nossa humanidade é invisível.” Segundo Lorena, ela própria deseja tentar escrever com a “consciência de que é muito, muito bom escrever com raiva. E que é preciso esticar a corda até a corda arrebentar. Sem medinho, não me vem com medinho.” Fiquei com vontade de ler o livro para conseguir tocar a aspereza dessa violência também.
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Na minha escrita, praticamente não há raiva. Talvez o medinho ocupe essa ausência.
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César Aira, no ensaio “O ensaio e o seu tema”, discorre sobre como os ensaístas enfrentam os temas do mundo de frente, sem a irrupção de um personagem. Além disso, os ensaios, pela sua natureza, associam temas diversos (tema A + tema B), ou seja, há um desvio ou perversão dos interesses dispersos por aí em torno de uma associação nova. Nessa subversão, encontra-se a arte, o pensamento, a inovação. Assim que vivi o assalto, desejei refletir sobre ele na escrita.
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Minha amiga, com o nervosismo do momento, esqueceu lá no boteco um livro e um tupperware com algumas bananinhas dentro. Eu havia colocado os doces ali para ela. Ao mandar uma mensagem para o estabelecimento para saber se suas coisas ainda estavam lá, eles responderam: “verifiquei com a equipe, o livro e o pote está (sic), as bananinhas não.” Dois roubos em dois dias seguidos. Pelo menos, esse é anedótico.
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Escrever sobre a violência é como tatear, na escuridão, as fronteiras do que é certo e errado, do que é justo e imoral, do que é vulgarizado e precioso. Nada mais humano, nada mais complexo.
Colagem de Dicas
Podcast: Estreou o meu novo podcast, em parceria com o Jornal Nota. O Clube do Livro Curto é um programa em que, a cada episódio, conversarei com o autor ou autora de uma obra de até 150 páginas e debateremos os temas e personagens que trazem vida a essas histórias. O primeiro livro do nosso Clube é o Vastidão, livro da escritora mineira Cristiana Rodrigues. Confira na versão YouTube ou Spotify.
Newsletter: Eu adoro as newsletters da historiadora da arte, curadora e apresentadora Katy Hessel. Ela tem o projeto The Great Women Artists em que fala do trabalho de mulheres nas Artes Plásticas e escreveu o livro The Story of Art Without Men. Na última edição, ela deu dicas das melhores livrarias da Europa. Se você mora por lá ou vai viajar logo, vale anotar as dicas. Se não é o caso, vale viajar por meio das fotos e descrições.
Receba meu abraço pelo triste episódio Sandra. Infelizmente a violência está aí, presente no dia a dia e não só no ir e vir, né? As "bananinhas" que o digam. Ainda bem que temos a escrita para dar vazão aos sentimentos.
E que coisa boa que o 1º episódio do Podcast já está no ar...vou lá conferir. Abraço
Sandra, sinto muito pelo assalto. Eu ia falar que era uma "full back to Brazil experience" mas na verdade fui vitima de pickpockets aqui - e foi a segunda vez em menos de 6 meses (uma vez na Belgica e agora aqui em Londres). Entao de Brazil isso nao tem nada. Mas pelo menos voce fez disso um belo texto!