A observação do cotidiano a partir do corpo
O experimento de sentir depois de assistir a "Drive my car"
No filme Drive my car (2021, do diretor Ryusuke Hamaguchi), o qual estou levemente obcecada nos últimos dias, tem uma cena que me marcou. Pra quem não assistiu, aqui vai um breve contexto: o filme conta a história de um diretor de teatro, recém-viúvo, que vai à Hiroshima dirigir uma peça. Por medidas de segurança da companhia de teatro que o contrata, ele deve ter uma motorista para transportá-lo durante o período de contrato. Ele não gosta da ideia, mas é obrigado a aceitar a cortesia. A partir desse contato diário, o diretor e a motorista estabelecem uma relação de cumplicidade ao processarem seus processos de luto e culpa.
Voltando à cena: o diretor e a motorista estão jantando na casa de um dos colegas de companhia de teatro. Em determinado momento, o colega pergunta ao diretor como a motorista dirige. Ele responde:
“É fabulosa. Ela acelera e desacelera tão suavemente que mal sinto a gravidade. Às vezes, esqueço que estou em um carro. Muitas pessoas já dirigiram para mim, mas nunca foi tão agradável. Estou feliz que ela foi designada como minha motorista.”
Após assistir a essa cena, passei a reparar nos meus trajetos pela cidade em ubers e como o meu corpo reagia a eles. Se antes um bom motorista era alguém que me levasse aos lugares com segurança, prudência, educação, ou seja, os pré-requisitos mínimos para que qualquer pessoa tenha uma habilitação para dirigir, agora o experimento era sentir a viagem. Quais trancos, aceleradas, barulhos e viradas minha coluna, minhas pernas, meus braços, meu abdômen, meus glúteos suportariam? O que a experiência externa de ser levada aos lugares por estranhos me faria vivenciar sensações internas? E como essas sensações se espelhariam na minha visão sobre o que é viver em uma nova cidade?
Em geral, os assentos são manchados, gastos e com espuma endurecida pelo peso dos inúmeros passageiros. Em muitos carros, o rádio toca músicas ou notícias num volume acima do que consideraria agradável. Os sacolejos são inevitáveis em ruas com buracos, desníveis no asfalto e inclinações, mas também com motoristas que soltam embreagens cedo demais, carros acelerados ou motores sedentos por revisão.
Ao contrário da descrição do personagem de Drive my car, o que mais sinto é a gravidade; da Terra, da precariedade, da sobrevivência.
A cena do elogio do diretor à motorista no filme é um lembrete, a mim mesma, de que a observação do cotidiano passa por todos os sentidos e não apenas pela visão. Até mesmo uma viagem de carro. Em uma cidade como São Paulo, com centenas de quilômetros de trânsito e horas perdidas em assentos de carro diariamente, refletir sobre como cada freada, som de combustão ou aroma de odorizante de carro afetam meu corpo e meu ânimo são formas de compreender mais a mim mesma nesse novo ambiente. Um exercício e tanto para a escrita, para a colagem, para a minha criação.
❗️Atenção. Esta newsletter entrará em um breve recesso por motivos de FLIP e férias! Logo mais, voltarei para mais textos sobre processo criativo, literatura, cinema, escrita e muito mais.
Colagem de dicas
FLIP: Neste ano, irei participar pela primeira vez da FLIP - Feira Literária Internacional de Paraty 🙌, entre os dias 09 e 13 de outubro. Se estiver na cidade, me avise! Terei programação na 5ª, 6ª e sábado, confira aqui:
SÉRIE DE TV: Ninguém quer (Netflix, 2024) é uma série de TV para os fãs da comédia romântica. Faz check ✅ em todos os pré-requisitos para o gênero: personagens carismáticos e bonitos (Kristen Bell e Adam Brody), um cenário charmoso (Los Angeles – a parte cool), personagens secundários cômicos (a irmã dela/ o irmão dele), conflitos para que o casal fique junto (ele rabino / ela podcaster de um programa sobre sexo e relacionamentos). Entretenimento leve para tempos pesados, amamos!
NEWSLETTER: Living London History é do historiador e guia turístico inglês Jack Chesher. Ele escreve semanalmente sobre curiosidades de Londres, a partir de um ponto de vista histórico e anedótico da cidade. Além da newsletter, ele faz vídeos curtos superinteressantes (com seu sotaque mega British) e escreveu London: A Guide for Curious Wanderers.